O “outro” desastre nuclear da União Soviética.

Durante os seus 74 anos de duração (1917-1991), a União Soviética deixou algumas coisas para o mundo. Uma delas foi o Lada, a outra foi o maior desastre nuclear que o mundo já viu.

Chernobyl foi um desastre nuclear instantâneo, uma junção entre um monte de falhas de projeto dos reatores, com um momento de descuido dos operadores e de sua liderança.

Mas, e se eu disser que a União Soviética teve um desastre nuclear que aconteceu continuamente, durante anos, com escala e abrangência quase igual, ou talvez maior que Chernobyl?

Este, meus amigos, é o relato do Desastre de Kysthim.


O Início

Tudo começou em 1945, mais precisamente, em agosto de 1945, quando, para conseguir a rendição do Japão, os Estados Unidos jogaram duas bombas atômicas nas cidades de Hiroshima e Nagasaki.

Impressionada pela nova tecnologia, a União Soviética iniciou um programa para reproduzir a tecnologia de enriquecimento de Urânio, para fins militares.

A fim de manter o programa secreto, e o mais distante possível dos olhos de quaisquer outros países, um dos locais escolhidos para as instalações do programa de enriquecimento de Urânio, foram as proximidades do Lago Karachay, um local isolado, ao sul dos montes Urais, onde foi construída a usina de Mayak entre 1946 e 1948.

Como a região era desabitada, os trabalhadores necessários para operar a usina eram 40.000 prisioneiros políticos realocados de gulags na Sibéria. Foram prometidas, pelo governo soviético, excelentes acomodações, e uma grande qualidade de vida. Como a alternativa aos que se recusassem era a Sibéria, as pessoas acharam melhor não fazer muito fact checking. Dessa forma, foi construída a cidade de Ozyorsk. Mas na época ela tinha outro nome. Como o final do código postal da área era “40”, foi conhecida como Chelyabinsk-40, ou simplesmente, Cidade 40.

Em 1949, a usina logrou êxito em produzir sua primeira bomba atômica. Após esse sucesso inicial, o governo soviético começou a demandar mais bombas, para serem entregues em cada vez menos tempo. Dessa forma, a usina foi ficando sem espaço para acomodar o Plutônio radioativo, que se formava como subproduto do enriquecimento do Urânio.

A solução óbvia para o problema, seria reportar ao governo soviético (Stálin), o esgotamento do espaço, e parar o programa de enriquecimento de urânio.

Mas, uma solução alternativa foi adotada :


Os Mananciais

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Esse é o rio Techa, que corre no flanco leste da região sul dos Montes Urais. Sem espaço para o lixo nuclear gerado pela usina, ao invés de esperar por uma ampliação da área destinada a rejeitos, o lixo nuclear começou, simplesmente, a ser jogado no rio. Entre 1949 e 1951, foram jogados 76 milhões de métros cúbicos de produtos químicos, incluindo 3,2 milhões de Cúries de lixo radioativo.

Mas não é só isso. Vejam também esse lago aqui :

Esse é o lago Karachay, o corpo de água mais próximo da usina. Inicialmente, ele seria usado para resfriar o lixo radioativo “quente” demais para ser destinado à área de estocagem. Porém, o plano foi alterado e foi decidido deixar o lixo tóxico ali mesmo.

Alem desses, temos também o lago Kyzyltash :

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Próximo ao lago Karachay, esse lago era o maior da região, e responsável pelo fornecimento de água para o resfriamento dos reatores. Água essa que rapidamente ficou contaminada devido ao cíclo aberto.


A “Doença Especial”

As primeiras investigações acerca da contaminação nuclear foram feitas em 1951. O primeiro vilarejo ao longo do rio Techa ser evacuado foi Meltino, com uma população de 1.200 habitantes, onde os níveis de radiação eram de 3,5-5 rad/hora, o que significava que, em menos de uma semana, as pessoas receberiam uma dose letal. Durante a década seguinte, 10 vilarejos ao longo do lago foram realocados, mas o maior deles, Muslumovo, permaneceu, e seus habitantes se transformaram em cobaias num experimento científico visando determinar as consequências, a longo prazo, de exposição a baixas doses de radiação. Eram reportados : Fadiga crônica, infertilidade, perda de peso, hipertensão, e deformidades congênitas cresceram para o triplo das taxas “normais”. Em 1953, foram examinadas 587 pessoas, e encontrados 200 casos claros de envenenamento radioativo (Diagnosticado pelos médicos como “Doença Especial”, pois ninguém podia saber sobre as instalações nucleares).

Ao todo, existiam 40 vilarejos ao longo do Techa, com uma população de 28.000 habitantes, 24 dependiam do rio como fonte primária de abastecimento. 23 foram evacuados.

Não se tem muitas informações sobre as vítimas da contaminação em Chelyabinsk-40, devido ao status secreto do programa nuclear soviético. Mas, nos anos 90, quando o status da usina nuclear finalmente foi tornado público, a cidade tinha uma incidência de casos de câncer 25% superior à média, 21% a mais de defeitos congênitos, e 41% a mais de casos de Leucemia.


O Acidente.

A produção acelerada de Urânio para bombas atômicas se fez, não apenas em detrimento do meio ambiente, mas também desrespeitando normas de segurança, então, diversos acidentes ocorreram nos anos 50, e 60, mas o que merece destaque, foi o Desastre de Kysthim ocorrido em 1957.

Em 29 de setembro de 1957, o sistema de resfriamento de um dos 14 containers de lixo radioativo estava fora de funcionamento, e não havia sido reparado. Como resultado, o lixo começou a se aquecer e a evaporar a água, com o lixo seco sofrendo uma explosão química da potência de 100 toneladas de TNT, que levantou a tampa de 160 toneladas como uma pluma.

Particulas radioativas foram espalhadas por uma área de 52.000 km2, onde viviam 270.000 pessoas.

Devido ao status “secreto” da usina de Mayak, as cidades próximas não foram avisadas imediatamente, nem houve qualquer informação a respeito da natureza do desastre. Foram evacuados apenas 10.000 habitantes de 22 vilarejos (em alguns casos, a evacuação levou dois anos). Como Chelyabinsk-40 não existia “oficialmente” nos mapas, o acidente recebeu o nome de Kysthim, a cidade mais próxima da usina.

A natureza do desastre apenas foi revelada em 1976 pelo dissidente Zhores Medvedev. Calculam-se que até 8000 pessoas tenham morrido de câncer nos 32 anos seguintes ao acidente, em consequência da radiação.

A área contaminada é conhecida como a Trilha Radioativa do Leste dos Urais (EURT). Durante os anos seguintes, a União Soviética tentou reduzir a contaminação escavando toneladas de solo e estocando nos chamados “Túmulos da Terra”, e criou a Reserva Natural do Leste dos Urais, proibindo qualquer acesso não autorizado à área.

Após o acidente, a prática de descartar o lixo radioativo no Rio Techa foi cessada, mas continuou sendo descartado nos lagos próximos, com destaque para o Lago Karachay.


A Abertura, e o Fim do Lago Karachay

A radiação emitida do lago estava em níveis de 600 roentgens/hora. O que significava que uma pessoa receberia uma dose letal de radiação recebida em menos de uma hora.

Nos anos 60, secas na região começaram a fazer o lago “encolher”. De cerca de 500.000m2, foi reduzido, para 150.000m2. Com a evaporação da água. O resíduo radioativo “seco”, passou a representar outro perigo. Em 1968, após uma seca, o material foi levado pelos ventos e meio milhão de pessoas foram expostas à radiação.

No final dos anos 70, foram tomadas providências a respeito do lago.

De 1978 a 1986, 10000 blocos de concreto foram colocados, a fim de prevenir qualquer deslocamento da areia do fundo do lago.

Nos anos 90, seguindo a política de abertura e transparência, as informações a respeito do lago foram abertas ao público. Em 1994, foi revelado que 5 milhões de m3 da água do lago haviam migrado e estavam se espalhando para o norte e o sul, a 80 metros por ano, ameaçando invadir outros rios e lençóis freáticos.

Também em 1994, foi iniciada a transferência do lixo radioativo do fundo do lago, para instalações mais adequadas.

Após outra seca que espalhou mais resíduos radioativos, foi decidido finalmente pelo aterramento total do lago, que ocorreu entre 2015 e 2016.


Hoje em dia.

Os níveis de radiação na área têm sido reduzidos. Parte do rio Techa já está livre de contaminação nuclear, embora as áreas mais críticas ainda permanecerão contaminadas por centenas de anos.

A cidade de Chelyabinsk-40 foi finalmente incluída no mapa, com o nome de Ozyorsk, tinha 82 mil habitantes em 2010, e sua visitação pelo público ainda é controlada . A usina de Mayak agora é uma usina de reprocessamento de lixo tóxico oriundo de descomissionamento de armas nucleares. Chegou a perder a licença em 2003 devido a descarte de poluição na águas de superfície, mas pelo menos, hoje em dia, coisas como “licenças ambientais” existem na Rússia.

Dizem que hoje em dia você até pode visitar as praias do lago Karachay sem morrer.

Você arriscaria essa visita?!


Fontes :

Pollution of Lake Karachay – Wikipedia

Cidade de Ozyorsk – Wikipedia

Desastre de Kysthym – Wikipedia

Mayak – Wikipedia

Lake Karachay – Wikipedia

Meet the lake so polluted that spending an hour there would kill you

Lake Karachay – Detailed Information

Lake Karachay – Ozersk Russia